A teoria da imprevisão nos contratos locatícios mediante a pandemia
Por Mauricio Tartareli Mendes
Foto: Freepik
A pandemia causada pela covid-19 tem trazido diversos desafios ao sistema jurídico, não só no Brasil, mas no mundo, em especial pelas relações sociais que precisaram ser distanciadas, a fim de se evitar mais óbitos.
Esse efeito causou um impacto nas rendas de trabalhadores e empresários, que passaram a enfrentar enormes dificuldades para honrar seus compromissos contratuais. Uma das obrigações que mais afeta o bolso de muitos brasileiros é, sem sombra de dúvida, o aluguel. Sem renda, inquilinos não conseguem pagar e os proprietários dependem ainda mais dessa renda.
A pergunta é, os efeitos da pandemia autorizam a aplicação da teoria da imprevisão nos contratos locatícios? A teoria da imprevisão, também conhecida como princípio da revisão dos contratos ou da onerosidade excessiva, nada mais é que a possibilidade de as partes requererem ao Poder Judiciário uma revisão das cláusulas contratuais, ou a sua completa revogação, quando este contrato se tornar excessivamente oneroso para uma das partes em virtude de eventos imprevisíveis, e está prevista no Código Civil nos artigos 317, 478, 479 e 480.
Pois bem, parece até ser uma questão óbvia de direito, mas nem sempre foi assim, mesmo hoje a questão é tratada de forma bem cautelosa pelos tribunais. Isso porque, antes da aplicação de qualquer princípio inerente aos contratos, um dos mais importantes é o princípio da obrigatoriedade, também conhecido como princípio da força vinculante, pelo qual as partes se obrigam a cumprir todas as cláusulas apostas o contrato.
Esse princípio traz segurança jurídica e confiabilidade no instrumento contratual, por isso é tão importante sua observação. Não fosse por ele, nunca teríamos a segurança em assinar um contrato.
Em virtude de experiências passadas, com a pandemia da gripe espanhola, duas guerras mundiais, golpes de estado, hiperinflação, etc., entendeu o legislador de 2002 pela inserção da teoria da imprevisão e da cláusula rebus sic stantibus no novo Código Civil, que pressupões a obrigatoriedade do cumprimento dos contratos de trato sucessivo (aqueles com obrigações periódicas, como o de aluguel), enquanto a situação de fato das partes estiver inalterada.
Dada a explicação acima, entendemos então que um contrato de aluguel, por ser de trato sucessivo, está sujeito a cláusula rebus sic stantibus e, portanto, alterações na situação fática do inquilino autorizam sua revisão, correto? Bem, nem sempre.
Isso porque alguns imprevistos de nossa vida cotidiana não podem ser interpretados com “imprevisão”, como perda de emprego, falecimento de um cônjuge ou outra forma de perda de renda. E, apesar de não planejarmos qualquer perda de renda em nossas vidas (ou falecimento de entes queridos), estes fatos são inerentes à rotina de qualquer ser humano.
Todos estamos sujeitos a perder nosso emprego ou ter o cônjuge ou o parente responsável por todas as contas. Estes casos, como exemplo, não eximem as pessoas de cumprirem com suas obrigações contratuais.
A pandemia, contudo, não impôs essa condição de forma “natural”, mas sim de maneira que a força motriz da economia, que é o recurso humano, tivesse que ficar reclusa, causando drástica perda de renda em trabalhadores e pequenos empresários.
Assim, é razoável afirmar que essa situação se aplica à teoria da imprevisão, e que as pessoas que tiveram perda de renda em virtude da pandemia possam ter seus contratos de locação revisados.
Mas é importante lembrar que estamos falando de revisão contratual, ou seja, uma forma apenas de não deixar o contrato de locação excessivamente oneroso ao inquilino. Não significa que o inquilino terá direito de não pagar mais os alugueis em função da pandemia, até porque o proprietário tem a expectativa de receber os frutos de seu patrimônio.
O que deve-se buscar sempre é a razoabilidade, ou seja, a dificuldade em pagar causada pela pandemia deve ser contornada de forma à atender ambas as partes como, por exemplo, rescindir o contrato sem a cobrança da multa, ou ceder carência de alguns meses para posterior pagamento de forma parcelada, ou a utilização do valor dado em caução para pagar alugueis futuros, redução proporcional dos alugueis, etc.
Nesse sentido, o Tribunal de Justiça tem se posicionado favoravelmente à aplicação da teoria da imprevisão para a revisão contratual em razão da pandemia :
“Agravo de Instrumento. Ação revisional. Locação. Autora que postula a tutela de urgência para manter o desconto de 60% mesmo após o prazo de vencimento e até autorização para retorno de suas atividades por ordem do Poder Público. Decisão agravada que indefere a liminar pleiteada. A tutela só se concede quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo, nos exatos termos do artigo 300 do CPC/2015. COVID-19. Teoria da imprevisão que se observa. Decisão reformada. Recurso provido.”
Mesmo com o gradual retorno das atividades econômicas, a retomada será lenta e deverá, prioritariamente, respeitar a segurança à vida das pessoas. Até lá, muitas pessoas continuarão a sofrer os efeitos da pandemia em suas vidas, negócios, relações, etc. Conclui-se assim que os impactos econômicos e sociais causados pela pandemia de covid-19 são fatores que podem, e devem, ser considerados como imprevisíveis e, portanto, autorizadores da aplicação da teoria da imprevisão para as hipóteses de extrema desvantagem contratual.
Referência Bibliográfica
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro 3. Contratos e Atos Unilaterais. 17ª Edição. São Paulo: Saraiva Educação. 2020